quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Quem não chora...


V é Assistente Social, divorciada, com dois filhos, acumula com alguma ajuda da mãe, as tarefas de dona de casa, chefe de família como pode, dividindo-se aqui, multiplicando-se acolá. Não tem sequer quarenta anos, mas aparenta-os, queixa-se que ganha pouco para o trabalho e responsabilidade que tem. Por vezes seguem-na até casa. Por vezes ameaçam-na, sempre pelos mesmo motivos – ela tem de conseguir o que lhe pedem. Exigem.
V, há uns dias, subiu ao nono piso de um prédio, acompanhada da colega. O casal residente, reclama à Assistência Social uma mobília de quarto, pois dormem no chão, com a filhita pequenina, e ainda por cima a esposa sofre da coluna. Os pais da esposa até já tinham feito um pequeno escândalo lá na AS, porque ai deles se a filha fica paralítica, que matam e esfolam. V toca inúmeras vezes à campainha, e nada, pois lá dentro do apartamento a batida mais parece que estamos na movida em Marbella. Após uma pausa nas batidas, a porta lá se abre. O esposo, rapaz de uns 25 anos, mal encarado pergunta de mau humor, o que é que querem? V, enquanto vislumbra na sala, a esposa a dançar ao ritmo quente dos decibéis, responde timidamente, exibindo o seu cartão de identificação – sou a Dta V, vimos por causa de… o rapaz esposo, nem a deixa terminar, e grita para a rapariga esposa, apaga essa m…., está aqui a doutora da mobília. Como se de um anti-milagre se tratasse, a jovem esposa, deixa de se contorcer ao compasso musical, desliga o som, e passa a contorcer-se das malditas dores que não a largam, não a deixam dormir, nem a ela nem à menina, coitadinha, nem ao marido esposo, que tem de garantir o sustento a vender na feira. E de caminho, V é convidada a ir ao aposento-quarto, que apenas apresenta um reles colchão no chão, e roupas, ao monte, também elas espalhadas pelo chão. Segue-se o inquérito – o plasma e o potente som, os sofás em pele, os móveis todos em mármore e espelhos, os electrodomésticos de cozinha todos cinzentos, são da senhoria, que alugou a casa assim…mas nada de mobília de quarto. Carro? Não têm. Existe um Mercedes à porta, que eles usam, mas é de um tio, tão tio que eles nem sabem precisar se dele ou dela. Os ouros, pendurados no corpo? Tudo imitação, que nos mercados vende-se muita imitação daquelas, imagine-se terem ouro e não terem uma cama... Nada daqueles bens lhes pertencem portanto. São um jovem casal, em que só ele trabalha para a menina não passar fome.
V cumpriu a sua parte, escreve o que tem que escrever, e sai do edifício. Antes de entrarem no carro V e a colega, ainda são abordadas pela suposta mãe de um deles, em tom de ameaça. Semanas mais tarde, V sabe que o pedido foi concedido. V sabe que é assim, que os que mais pedem mais mamam, bem como sabe que as verbas são rapidamente esgotadas nestes casos, e que os verdadeiramente necessitados, não levam nada. O Governo faz a sua parte, e o seu discurso. Os que berram, e ameaçam ficam com o bolo, e os outros, ou ficam com nada, ou fazem como a V, que acaba de comprar uma mobília, a prestações. Suaves.

Os factos e pessoas relatados são pura ficção.
Qualquer coincidência com o que se passa em Portugal é pura coincidência.
Se disserem que sou amigo da V e ela me contou tudo isto, ontem, entre duas bicas e um pastel de nata, eu nego.

2 comentários:

  1. Como me é familiar. Trabalhei uns anos na Casa Pia de Lisboa, e como Técnica de acompanhamento tinha de fazer visitas domiciliárias. Vi desde gente a dormir no chão, com grandes ecrãs Panasonic no único móvel da casa, a grandes Mercedes na porta de barracas. E os filhos com fome. Não é raro esse cenário...

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  2. É uma vergonha mesmo!!! Essas coisas dão-me cá uma raiva!...

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Sputnickadelas