terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Obrigado


Não é novidade para quem me conhece que me pélo por tocar e cantar, seja onde for. Nestes anos de toques tive alguns momentos de glória, como tocar no Dramático de Cascais, a fazer a primeira parte do Iggy Pop, momentos de climax, que não enumero aqui, momentos de honra, como recentemente, tocar para o Carlos do Carmo, e toda a sua comitiva, Orquestra incluída.
Porém, há dias, mesmo que raros, em que não nos apetece, por mais que gostemos, de fazer o que gostamos, dias, em que a mente, e o corpo pedem algo totalmente diferente.
Acordo, chove, estou cansado, ressacado dos toques, as notícias avisam do frio, da chuva, mando um sms esperançado - com este tempo, mntém-se aquilo para hoje? A resposta veio esmagar-me a esperança - claro que sim, meio-dia o mais tardar, tens de lá estar!
Praguejo, insulto-me, rosno, mas porque é que eu fui dizer que ía, porra.
As notícias eram certas, rumo a oeste que afinal tem muito de novo, a temperatura rondava os seis. Continuo a mutilar-me com insultos pelo compromisso assumido, e o meu egoísmo está a mil, desejando um telefonema tipo - olha Sputnick, caíu uma velhinha, já não há festa, volta para trás. Mas não. Nada. Ninguém caíu...
Chego ao local, onde o meu amigo me espera, com a mãe, residente. Isto é um lar? Arrisco. Não, esclarece a senhora, isto é uma espécie de cooperativa. Olho em volta, e detecto detalhes de hotel de 4*. Sim senhor, D.P, não há dúvida que a senhora teve muito bom gosto, até piscina têm. Explica-me a D.P, orgulhosa - todos temos o nosso apartamento, com quarto, sala e casa de banho, decorado com os nossos pertences, muitos casais, decidiram vender a casa deles e comprar aqui, pois aqui temos de tudo. E têm sim. As áreas, de lazer fazem corar qualquer instalação hoteleira, com espaços verdes, amplos salões, e uma vista previlegiada. O detalhe mais curioso, é que até existe cabeleireira, pois a maltinha pode estar velha mas gosta de se aperaltar. Começam as músicas e aos poucos começo a esquecer o meu ego e a enternecer-me por aquelas pessoas que me acarinham, convivem, e a cada nova melodia revelam o quanto podem, dos anos perdidos, e é assim que numas marchinhas improvisadas, vejo gente a dançar, com bengalas, vejo as funcionárias a dançar segurando ternamente a cadeira de rodas de quem já não se levanta, mas levanta os braços ao ritmo da música, e me manda beijinhos quando passa por mim, vejo velhos que sisudos e desconfiados no início, se rendem, e puxando dos seus galões, arriscam passos de dança... tudo aquilo me foi comovendo, esqueço-me do cansaço, digo-me shame on you entre dentes, e dou em palco tudo o que tenho, porque eles merecem.
No final, era eu quem os aplaudia, e lhes agradecia afinal, a lição que sem eles saberem, me deram. Para trás ficou a alegria daquela gente que já foi nova, ficou a D.P, radiante pelo sucesso da festa, ficou também a senhora cujo marido faleceu há duas semanas, e ela nem dá por isso, pela sua ausência, pelo vazio na cama. Ficam, as cadeiras de rodas, as andadeiras, as fraldas, as funcionárias que acarinham estes velhos, permanentemente. Fica a certeza de que este é o caminho de todos, e por isso, urge tomar a consciência de que velhos são os trapos. O velho, é pessoa até ao fim, e por direito merece ter condições..de vida, e não de estorvo.
De regresso, pensei no quanto seria entendível para mim, e a todos os que tivessem o previlégio de visitar o espaço onde estive, aplicar o nosso dinheiro em múltiplos espaços destes, onde se vive com dignidade, até subir ao piso de cima. É que por mais que me esforce, em nome da prioridade, e da dignidade humana, não consigo entender como se pode gastar o tal dito dinheiro, nosso, em submarinos, comboios, aeroportos e outras ofensas com que nos agride a classe política deste país, que um dia serão velhos. De luxo. Os sacanas.

4 comentários:

  1. Puxa Sputnick, que lindo texto. Trabalho num sítio assim, onde importa a pessoa e o seu bem estar. E sinto-me uma felizarda por isso. Dão-nos tanto, diariamente. Pena que há que não perceba isso... Ainda bem que existem sítios assim. São poucos, tens razão. É necessário muito mais, e pouco se investe aí. Hoje, e como trabalhadora na área, já encontro algumas melhorias. Ténues, mas enfim, algumas...

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  2. (puxo a cadeira para trás, para me levantar)
    ...

    clap! clap! clap!

    Um grande aplauso para ti!

    :)

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  3. Tens de me dizer onde é isso :):)
    Belo texto :):)

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  4. Ai meninas, vocês estragam-me com mimos :)

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Sputnickadelas