segunda-feira, 28 de março de 2011

Chegadas e Partidas


Uma série da tv que procuro ver sempre que posso, é o conta-me como foi. Gosto, pela tentativa de rigor, dos assuntos, dos figurinos, das músicas, dos costumes. Por vezes um filho, ou sobrinho me vem perguntar se era mesmo assim. E era.

O assunto mais relevante do episódio de ontem, tratava da partida do jovem mancebo para Moçambique, para o Ultramar.

Instantâneamente, viajei até às partidas e chegadas do paquete Império, pertença da Companhia Colonial de Navegação, que a cada cinquenta e dois dias, mais coisa menos coisa, atracava em Lisboa. Estava-se na década de sessenta.

Poucas partidas presenciei, pois a minha avó, apesar de não se ir despedir do meu avô, por muito tempo, pois sendo ele tripulante, não ía para a guerra, leváva-os para a guerra. Mas não trazia todos. Aos rapazolas, que na esmagadora maioria, só pisavam Lisboa nesse mesmo dia. As partidas eram emocionalmente arrasadoras. Os megafones à boa maneira nazi debitavam frenéticamente, o hino Angola é nossa (disponível no Youtube). Os pides à paisana e as forças da ordem fardadas garantiam que a multidão não entrásse em histeria colectiva. Mães, pais, mulheres, irmãos, emitiam gritos de arrepiar, ao primeiro soltar das amarras, acompanhado da potente sirene do navio. Nas amuradas, aos miúdos, então mais velhos que eu, a uns dáva-lhes para rir como se fossem em excursão, a outros para chorar. Era um mar de lenços a abanar. Na medida em que lentamente o barco se afastava do cais, aumentava a dor dos que ficavam. A partir daquele dia seriam anos de medo e aperto nos corações. Nos dias de partida, e principalmente naqueles que presenciámos, ao serão não se via televisão e comia-se uma sopinha, como que numa espécie de recolhimento. E a minha avó rezava mais, ao deitar.

Das chegadas, não as perdia. O avô vinha recheado de tudo o que era bom. As bananas, os ananazes, as lagostas, os doces de Capetown, e principalmente, os brinquedos. Era uma festa lá em casa, assim como era festa para os restantes familiares das tripulações. Porém, no meio de nós, haviam os outros, um pouco esquecidos pela euforia destas chegadas. Esses outros, afinal aqueles que sustentavam aquele navio, a sua viajem, e o seu propósito, os que contribuiam com os seus meninos para ir lá para fora matar os terroristas !! A apreensão, insegurança, e desnorte era sempre grande naqueles rostos, pois as informações eram sempre imprecisas e escassas. Não havia mãe ou pai que não tivesse um pressentimento, de que o seu rapaz não chegasse de maca, amputado, cego, ou mentalmente afectado.

E por isso as chegadas do Império tinham três fases. A primeira, onde saíam os passageiros civis, e os soldados saudáveis, com as suas tatuagens de amor à Guiné , e até todo este grande grupo descer do navio, e com as suas bagagens e familiares rumarem às suas terras, a polícia não autorizava mais desembarques, até que depois se seguia a segunda fase. Os que esperavam os da segunda fase não riam, olhavam apenas para o navio numa tentativa de ver quando descia o seu soldado. E quando começavam a descer, os coros eram arrepiantes, um a um desciam, ajudados ou não os mutilados. Os jovens soldados,marcados para o resto da vida. A polícia garantia que não houvessem fotografias, ou jornalistas armados em espertos.

Para os que saiam na terceira fase, não haviam espectadores. Nem os seus familiares, pois nem estes sabiam da sua chegada. Era a vez do desfile dos caixões. Um a um eram carregados, na calada da noite em camionetes militares, e depositados lá para os lados do Braço de Prata. Nos dias seguintes, os pides locais, avisariam lá na terrinha, sobre a morte do jovem, que bravamente se batera em defesa da pátria, e entragava-se o caixão com um corpo e uma medalha à família. Ficava sempre a dúvida se estariam a enterrar o soldado certo, dado que abrir o caixão, nem pensar.

Se conto como foi, é porque sei. E porque sei, não consigo entender porque raio, Cavaco Silva, que até se gaba de ter estado, a servir a nação, vir com aquela conversa aos jovens da geração à rasca, sobre os jovens da guerra colonial, e tal e tal.

Ele há coisas que não entendo.

1 comentário:

Sputnickadelas