sexta-feira, 9 de abril de 2010

Vidas - Careca, o Mentor



O António " Careca" foi durante os meus primeiros passos da música um mentor, um professor, uma inspiração, um exemplo a seguir. Penso que o conheci quando tinha cerca de dez anos, quando ele pintava umas paredes na casa da minha mãe. Pintava quadros, garrafas, paredes, e tocava viola. Com os bailaricos aqui na terra, que isto aqui sim, nos anos sessenta era aldeia, ou nem isso, deslumbro-me com o conjunto do Careca. Lá estava ele nos "5 Stars" com a sua guitarra Eko e o seu novíssimo e revolucionário amplificador vindo lá do Japão, de uma marca desconhecida, o Yamaha que ainda hoje toca lindamente, lá no meu cantinho.

Com visitas frequentes à casa do Careca, depressa aprendi o suficiente para caminhar nas lides musicais, e foi graças a alguma paciência sempre necessária para quem ensina, que o Careca me ensinou os acordes dos hits da banda furor do momento, os Creedence Clearwater Revival, bem como peças mais difíceis como o Desafinado que o dito descabelado tocava na perfeição. Homem artista, o Careca deslumbrava os miúdos lá da rua, os da minha idade, pois com os seus cerca de dez anos mais, e a tocar num conjunto, que corria todos os bailaricos, sempre haviam histórias picantes para contar, fruto dos contactos visuais músico-miúda-que-está-a-dançar-e-não-pára-de-me-galar, porque nos anos sessenta um sorriso de rapariga, um cruzar de olhar, já era dado como grande conquista.

Quando o Careca comprou a sua Hofner o mundo parou. Era a guitarra mais linda do mundo, a melhor, uma peça rara, um bem que só de olhar deleitava, quanto mais tocá-la, e que eu saiba, eu fui o único lá do maralhal a tê-la mas mãos. Mas bom mesmo era ver o Careca a arrancar os seus acordes jazísticos e solos incríveis, com cópias irrepreensíveis como o Sampa pa ti.

E eu cresci, os rumos foram diferentes, e perdi o rasto ao Careca.

Até há dias, em que primeiro me parecia ele, e depois, mais próximo, sim era ele. Velho, mal trajado, curvado, como se tivesse oitenta anos. Por incrível acaso carregava no carro a minha Fender, e antecipo ali um reencontro efusivo com acordes à mistura. Na medida em que encosto o carro, antevejo que o Careca vai adorar os timbres e a escala da Fender e decerto o meu antigo guru dará uma nota positiva tanto ao instrumento como ao aluno. Vou saber onde anda a Hofner, em que palcos brilharam, que equipamento terá o António. Será que ele tem tempo para aparecer lá em casa e desbundarmos os dois...

Primeiro fica ali a ver quem era, o puto magrela, tornou-se num cinquentão gordito, mas logo que me reconhece recebe-me com entusiásmo, e findos os preliminares triviais, digo-lhe, olha o que tenho aqui, e mal lhe mostro o estojo da guitarra, o Careca mudou de rosto, e dispara como se eu fosse o pior inimigo - não quero saber de músicas, nunca mais quero ver uma viola, a música arruinou a minha vida, vai-te embora daqui com isso. Sai dqui!
Não sei se fiquei azul, se verde, se de beicinho, se incrédulo. Apenas sei que mecânicamente me meti no carro, dei à ignição, e no arrancar lhe consegui a custo dizer-lhe em voz trémula - Desculpa António.



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